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                    CARNAVAL  DO RIO DE JANEIRO 
                      07-02-1986 
                         
                        Começa  hoje oficialmente o Carnaval de 1986.  
                          O Rio de Janeiro está engalanado para superar as mais fantásticas previsões de  turistas estrangeiros, de toda parte, atraídos pelo dólar forte e o cruzeiro  fraco. 
                          A Manchete já começou a sua programação de 200 horas ininterruptas de  transmissão ao vivo, de todo o País. 
                          A NBC de Nova Iorque veio com algumas toneladas de equipamentos para o envio de flashes, durante duas horas por dia, para todas as partes dos Estados  Unidos da América.  
                          É o terceiro Carnaval no Sambódromo, o primeiro da administração do Saturnino  Braga, o novo prefeito, e o espírito folião, autêntico e kitsch,  encendia multidões. 
                           
                          Os temas das músicas carnavalescas, com a liberação da censura, falam de  F.M.I., inflação, O.R.T.N. e dívida externa, AIDS e a próxima Copa do Mundo de  Futebol. Além, é óbvio, dos temas picarescos (como a “mamãe eu quero uma  chupeta pra chupar”, do Clóvis Bornay e parceiro) e os sambas-enredos eivados  de uma história de manchetes, estereotipia e em partilhas homeopáticas.  
                          Mas Carnaval é isso mesmo. O senso de bom-gosto dos carnavalescos não reza  pelas cartilhas ortodoxas. Os grandes bailes continuam a exibir suntuosas  fantasias onde há pouco lugar para a renovação e a criatividade, mas muito  espaço para as eternas plumas e paetês, sobre um corpo de folião mumificado e  deificado  em seu curto reinado de  vaidade e alegoria, tão desconfortável quanto deslumbrante. 
                           
                          Que estranha patologia do comportamento humano que faz o carnavalesco suportar  uma fantasia que o imobiliza e o impede de um contato físico na festa, mas o  torna glorioso em seu pavoneio, em seu desfile diante das câmeras! 
                           
                          “Meu reino por um cavalo”, diria Figueiredo; “meu conforto e a minha liberdade”  por um minuto de glória na passarela do Scala, diria Clovis Bornay. 
                          O carnaval é a extroversão total e coletiva. Visto de fora pode até ser bonito  mas também pode ser ridículo. Lá dentro do baile, do bloco, do desfile, o homem  comum realiza, se libera de suas energias, ganha uma importância cultural  inestimável, libera um quanto de sensualismo, de ritualismo, de auto-estima, de  non-sense, de alienação libertadora. É a catarse coletiva, auto-consentida, nos  limites da tolerância humana. Hedonismo. É a anti-civilização, no sentido em  que o carnaval contradiz a ordem, o estabelecido, a norma. 
                          Naturalmente que o Carnaval, da perspectiva do comportamento religioso ou  ético, é a licenciosidade, a afloração de nossos instintos, a purgação de  nossos sonhos reprimidos, a depuração de nossas fantasias inibidas, a  decantação de nossos fluidos e eflúvios sub-humanos e pagãos. 
                           
                          Carnaval como festa dionisíaca, ditirâmbica, com o grande “happening” do ser  voltado para o vir-a-ser, do faz de conta, do até-que-poderia ser.  O verdadeiro carnaval, sobretudo o de rua, é  anárquico, desorganizado, improvisado, espontâneo.  
                          O Carnaval da Passarela do Samba é a coreografia hollywoodiana do Carnaval  projetado para fora, como fantasia visual. O folião marcha mas não apenas  samba. Entra na cadência simétrica, no ritmo metrado sem consonância com a  mensagem rimada, no ritmo metrado em consonância com a mensagem rimada, com a  ginga programada, com as evoluções projetadas.  
                          Não há mistério no Carnaval das Escolas de Samba pois toda a escola é, por  essência, um processo de uniformização, de socialização, de padronização. 
                           
                          Na Passarela o que vale é o conjunto, os movimentos em alas e de figurantes. Só  por exceção a originalidade do sambista, o malabarismo do pandeirista, a  improvisação da porta-bandeira quando são flagrados pela TV, pela objetiva do  fotógrafo. Só aí o indivíduo se reinstaura, se restabelece, se enaltece. 
                          A beleza do carnaval dos desfiles está na ordem, na sincronia, nas mis-en-scene  do grupo. É uma beleza do conjunto, uma  beleza plural e abrangente. 
                          Outro Carnaval, o verdadeiro carnaval espontâneo, o carnaval da carne e do  instinto, da explosão do individualismo, do anonimato das máscaras, das  criações pessoais, interdependentes, é o carnaval de rua. Caótico,  imprevisível, potencialmente explosivo, sob o espírito das massas, do  anonimato, da vivência de nosso personagem pessoal.  Inventado, satirizado mas que é a gente  mesmo, o nosso avesso, o nosso outro lado, o nossos outro eu.     
                           
                          É o carnaval de mini-sketches, da mil interpretações momentâneas, das  micro-performances de cada um dos foliões, visto ou não visto, aplaudido ou  ignorado. 
                    Aquele carnaval da carne, do beijo, da cachaça, do roçar dos músculos, de suor  e compasso, de sofreguidão e exaustão. Até mesmo do ridículo, do escárnio, da  auto-flagelação e do desespero.  
                   
                  Um é  o carnaval da orquestração, do régisseur, da coreografia, o carnaval-teatral,  que recria os mitos e os heróis. O outro é o carnaval avacalhado, sujo, moleque  e galhofeiro, demolidor de mitos e gozador das virtudes, criticão e  blasfemador, de curtição e deboche.  
                     
                    O Carnaval da passarela é a montagem, a reconstrução alegórica, é a criação  coletiva (sob liderança...), sim, sob o comando da imaginação. É para ser  visto, julgado, interpretado, aplaudido. Os sambistas são atores, bailarinos,  cantores numa ópera de favela, num delírio de grandeza. 
                  O de  rua, o do bloco de sujo, do zé-poeira, da zona rural, das pequenas vilas, dos  coretos dos subúrbios, das multidões que acompanham as bandinhas improvisadas,  os trios-elétricos pobres, os alto-falantes das pracinhas, é o carnaval da  plebe, do homem-comum, da criação individual, da catarse, da fuga, da opereta  caricata, sem enredo e sem medo, puro folguedo.             
                    Há o carnaval para ser visto e o carnaval para ser vivido.  
                    O carnaval dos adereços e o carnaval da nudez, o carnaval explícito e o carnaval  “explosivo”, exteriorizado, do improviso e do imprevisto, sem rédeas e de pura  extroversão... 
   
                    Carnaval das cores, das cuicas do farfalhar das saias das baianas, das  negas-malucas, dos pierrôs e arlequins da tradição importada, dos rituais  miscigenados, do estereótipo e dos balangandãs de Carmem Miranda, tipo  exportação, tipo consumo e produção.  
                    Há carnaval para todos e os tempos são de liberdade, carestia, gratuidade,  alienação e fantasia!!!  
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                    [“Em 1986, o Carnaval do Rio de Janeiro, realizado no Sambódromo, teve a  Mangueira como campeã com o enredo "Caymmi Mostra ao Mundo o que a Bahia  Tem e a Mangueira Também". A Beija-Flor ficou em segundo lugar com  "O Mundo É Uma Bola", e o Império Serrano em terceiro com "Eu  Quero". O evento também marcou avanços técnicos, como cronometragem  eletrônica e melhorias no som.” [Google 1986]. 
                
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